terça-feira, 2 de outubro de 2018

Resenha: Vox / Christina Dalcher


Imagina que você fosse obrigada a falar diariamente apenas 100 palavras. Adeus dar bom dia para o porteiro, motorista do ônibus ou até para desconhecidos. Adeus cantar no chuveiro. Adeus falar sozinha. Tendo apenas 100 palavras por dia você deve escolhê-las muito bem, você já contou quantas palavras você fala por dia? Eu fiz isso durante a leitura do livro e percebi que ficaria louca se só tivesse 100 palavras. Essa é a premissa da distopia criada pela Christina Dalcher, ‘Vox’ é a leitura ideal para o nosso tempo, faz a gente pensar, nos tira do nosso lugar de conforto e principalmente faz um alerta quanto ao perigo de fundamentalismo e conservadorismo exacerbado envolvidos na política.

Geralmente distopias têm como característica ser num futuro distante onde algumas vezes a Terra passou por desastres ambientais, por culpa dos humanos ou não, houve um ataque alienígena ou até mesmo golpe político, mas tudo isso sempre num futuro distante, bem essa é a primeira diferença de ‘Vox’, no livro as coisas não acontecem num futuro distante, acontecem amanhã e muito rápido as pessoas se veem numa situação da qual não podem fugir. A segunda característica que diferencia este livro as últimas distopias já publicadas é a protagonista, ela é uma mulher, cientista, mãe, esposa e com muitos erros em sua vida, não é perfeita e não é uma adolescente, achei esse ponto extremamente positivo. É um livro só e não uma série, sempre quando pegamos uma distopia já imaginamos que vai ser uma série de quinhentos livros e vários anos para a gente descobrir o final, em ‘Vox’ já está tudo aqui. E os capítulos são muito curtinhos, acho que o maior deve ter umas cinco/sete páginas, isso faz com que a leitura flua muito rapidamente, fiquei naquilo de ‘só mais um’ e quando vi faltavam apenas 20 páginas.

Jean McClellan perdeu sua voz, ou melhor, foi forçada a ficar calada, também conhecida como Dra. McClellan ela é uma cientista e fonoaudióloga brilhante que estuda principalmente como reativar uma parte do cérebro, afetada pela afasia de Wernicke, através de um soro, esta é a área relacionada com a linguagem. Com quatro filhos ela nunca se identificou com o ‘ser dona de casa’, ela é cientista por vocação e por amor, claro que ama os filhos, mas fazer o jantar não estava no seu rol de interesses.

Ao longo dos anos ela nunca foi ligada a política, tinha uma manifestação, mas ela preferia ficar estudando para uma prova difícil, tudo começa a mudar quando o Presidente Sam Myers consegue se eleger com ajuda do Reverendo Carl e do Movimento Puro, que ditava que o tempo presente no qual as mulheres são donas de suas vidas não era o melhor para a sociedade, isso só fazia com que homens ficassem desempregados, onde já se viu tantas mulheres no mercado de trabalho, o lugar delas é dentro de casa, cuidando dos filhos e se possível quietas para não perturbar os homens trabalhadores, por mais surreal que possa parecer, o movimento puro se expandiu, e com a chegada ao poder através do voto foi instrumentalizado.

“Homens conservadores que amam seu Deus e seu país, as mulheres, nem tanto.”

Se há muitas mulheres no mercado de trabalho, fácil, as proibimos de trabalhar, apreendemos também seus passaportes, já que obviamente não podem viajar sem autorização de seus maridos. Vamos também proibir que elas ascendam a cargos políticos, não precisam de representatividade, afinal os homens sabem o que é melhor para elas. Aquelas mulheres desviantes, adúlteras ou lésbicas, por exemplo, são encaminhadas para campos de trabalho para aprenderem na força a entrar na linha da pureza, mas as mulheres falam demais, fazem manifestações barulhentas nas ruas e por isso que é criado o contador de palavras, aka objeto de tortura, o governo através de um decreto faz com que as mulheres tenham que usar esse contador, vendido pelo governo como uma pulseira que as mulheres poderiam até mesmo escolher a cor que combine mais com ela, mas caso falassem mais de 100 palavras por dia, receberiam um choque, choque este que seria aumentado gradualmente sempre que esse número fosse ultrapassado. Ah, uma pulseira dessas era dada a toda pessoa do sexo feminino, independente da idade, desde uma bebê até uma senhora. Foram instaladas câmeras por toda a parte, então utilizar a linguagem dos sinais não era um caminho. Computadores e livros foram trancados, apenas os homens podem ter acesso, escolas foram separadas, os meninos continuam a aprender conhecimentos gerais, as meninas, corte, costura e matemática doméstica.

“Nós nos transformamos em males necessários, objetos para ser fodidos e não ouvidos.”

“As Recatadas do Lar. Aquelas garotas com saias e suéteres iguais e sapatos discretos indo para seus cursos de dona de casa. Você acha que elas são como a gente? Não mesmo.”

Jean se vê nesta nova sociedade, tudo foi acontecendo e ela não pode fazer nada, seu filho mais velho estuda ‘Estudos Religiosos Avançados’ e se identifica com os preceitos que dizem que ele é superior a sua mãe, sua filha mais nova de apenas 5 anos, ganha um sorvete como prêmio por ser a menina que ficou um dia inteiro sem proferir nenhuma única palavra, enquanto o seu marido que trabalha para o governo e segundo Jean é uma ovelha, pois apesar de estar puto, não faz nada e em alguns momentos até parece gostar do contador de palavras.

“Como mulheres, devemos manter o silêncio e obedecer. Se precisarmos saber de algo, perguntemos aos nossos maridos na intimidade do lar, porque é vergonhoso uma mulher questionar a liderança do homem, ordenada por Deus.”

As coisas começam a mudar quando o irmão do presidente sofre um acidente que faz com que ele fique com a afasia de Wernicke e Jean é convocada a voltar a trabalhar para reverter a anomalia cerebral, ela resolve fazer um acordo com o governo pedindo para ter sua amiga Lin como auxiliar e que retirassem os contadores dela e de sua filha.

Mas quando Jean começa a descobrir que nada parece ser o que realmente é, que o laboratório no qual está trabalhando não parece estar interessado somente em desenvolver curas, ela entende que a única forma de sobreviver é resistir.

Esse livro fez com que eu questionasse minhas próprias ações, o não fazer nada, o não se posicionar também é uma posição, até que ponto ficamos dentro de nossas bolhas e não percebemos que o perigo está a espreita? Tem muitas passagens que fazem a gente querer socar os personagens, em muitos momentos fiquei com nojo dos homens e pensar que muitos são assim na vida real me dá muita indignação, mas ei, não pense que é um livro de ódio aos homens, não há generalizações, tem sim aqueles homões da porra também, que se posicionam e veem que tá tudo errado e vão lutar ao lado das mulheres para derrubar o sistema opressor. O aprendizado é que ninguém tem o direito de tirar a voz de alguém, e nunca podemos abaixar a cabeça porque um homem diz que somos menores por sermos mulheres, afinal who run the world?

Por fim, como historiadora que estudou distopias na faculdade e quase fez a própria monografia sobre distopias, posso dizer que este livro tem tudo para se tornar um daqueles de referência para ficar do lado de, por exemplo, ‘1984’ e ‘Admirável Mundo Novo’, ah, e quem mergulhou nas histórias da Katniss e da Tris também irá curtir essa leitura. E principalmente, quem assim como eu ama o seriado The Handmaid’s Tale, essa é a leitura certa para enquanto esperamos a próxima temporada.

Um obrigada especial a Editora Arqueiro por nos mandar o livro antes do lançamento.

‘Vox’ será lançado no próximo dia 16 e está em pré-venda com brinde especial.

Nenhum comentário:

Postar um comentário