Imagina que você fosse obrigada a
falar diariamente apenas 100 palavras. Adeus dar bom dia para o porteiro,
motorista do ônibus ou até para desconhecidos. Adeus cantar no chuveiro. Adeus
falar sozinha. Tendo apenas 100 palavras por dia você deve escolhê-las muito
bem, você já contou quantas palavras você fala por dia? Eu fiz isso durante a
leitura do livro e percebi que ficaria louca se só tivesse 100 palavras. Essa é a premissa da distopia criada pela Christina Dalcher, ‘Vox’ é a
leitura ideal para o nosso tempo, faz a gente pensar, nos tira do nosso lugar
de conforto e principalmente faz um alerta quanto ao perigo de fundamentalismo
e conservadorismo exacerbado envolvidos na política.
Geralmente distopias têm como
característica ser num futuro distante onde algumas vezes a Terra passou por
desastres ambientais, por culpa dos humanos ou não, houve um ataque alienígena
ou até mesmo golpe político, mas tudo isso sempre num futuro distante, bem essa
é a primeira diferença de ‘Vox’, no livro as coisas não acontecem num futuro
distante, acontecem amanhã e muito rápido as pessoas se veem numa situação da
qual não podem fugir. A segunda característica que diferencia este livro as
últimas distopias já publicadas é a protagonista, ela é uma mulher, cientista,
mãe, esposa e com muitos erros em sua vida, não é perfeita e não é uma
adolescente, achei esse ponto extremamente positivo. É um livro só e não uma
série, sempre quando pegamos uma distopia já imaginamos que vai ser uma série
de quinhentos livros e vários anos para a gente descobrir o final, em ‘Vox’ já
está tudo aqui. E os capítulos são muito curtinhos, acho que o maior deve ter
umas cinco/sete páginas, isso faz com que a leitura flua muito rapidamente,
fiquei naquilo de ‘só mais um’ e quando vi faltavam apenas 20 páginas.
Jean McClellan perdeu sua voz, ou
melhor, foi forçada a ficar calada, também conhecida como Dra. McClellan ela é
uma cientista e fonoaudióloga brilhante que estuda principalmente como reativar uma parte
do cérebro, afetada pela afasia de Wernicke, através de um soro, esta é a área relacionada com a linguagem. Com quatro filhos ela nunca se identificou com o
‘ser dona de casa’, ela é cientista por vocação e por amor, claro que ama os
filhos, mas fazer o jantar não estava no seu rol de interesses.
Ao longo dos anos ela nunca foi
ligada a política, tinha uma manifestação, mas ela preferia ficar estudando
para uma prova difícil, tudo começa a mudar quando o Presidente Sam Myers
consegue se eleger com ajuda do Reverendo Carl e do Movimento Puro, que ditava que
o tempo presente no qual as mulheres são donas de suas vidas não era o melhor
para a sociedade, isso só fazia com que homens ficassem desempregados, onde já
se viu tantas mulheres no mercado de trabalho, o lugar delas é dentro de casa,
cuidando dos filhos e se possível quietas para não perturbar os homens
trabalhadores, por mais surreal que possa parecer, o movimento puro se
expandiu, e com a chegada ao poder através do voto foi instrumentalizado.
“Homens conservadores que amam seu
Deus e seu país, as mulheres, nem tanto.”
Se há muitas mulheres no mercado de
trabalho, fácil, as proibimos de trabalhar, apreendemos também seus
passaportes, já que obviamente não podem viajar sem autorização de seus
maridos. Vamos também proibir que elas ascendam a cargos políticos, não
precisam de representatividade, afinal os homens sabem o que é melhor para
elas. Aquelas mulheres desviantes, adúlteras ou lésbicas, por exemplo, são
encaminhadas para campos de trabalho para aprenderem na força a entrar na linha
da pureza, mas as mulheres falam demais, fazem manifestações barulhentas nas
ruas e por isso que é criado o contador de palavras, aka objeto de tortura, o
governo através de um decreto faz com que as mulheres tenham que usar esse
contador, vendido pelo governo como uma pulseira que as mulheres poderiam até
mesmo escolher a cor que combine mais com ela, mas caso falassem mais de 100
palavras por dia, receberiam um choque, choque este que seria aumentado
gradualmente sempre que esse número fosse ultrapassado. Ah, uma pulseira dessas
era dada a toda pessoa do sexo feminino, independente da idade, desde uma bebê
até uma senhora. Foram instaladas câmeras por toda a parte, então utilizar a
linguagem dos sinais não era um caminho. Computadores e livros foram trancados,
apenas os homens podem ter acesso, escolas foram separadas, os meninos
continuam a aprender conhecimentos gerais, as meninas, corte, costura e
matemática doméstica.
“Nós nos transformamos em males
necessários, objetos para ser fodidos e não ouvidos.”
“As Recatadas do Lar. Aquelas
garotas com saias e suéteres iguais e sapatos discretos indo para seus cursos
de dona de casa. Você acha que elas são como a gente? Não mesmo.”
Jean se vê nesta nova sociedade,
tudo foi acontecendo e ela não pode fazer nada, seu filho mais velho estuda
‘Estudos Religiosos Avançados’ e se identifica com os preceitos que dizem que ele
é superior a sua mãe, sua filha mais nova de apenas 5 anos, ganha um sorvete
como prêmio por ser a menina que ficou um dia inteiro sem proferir nenhuma
única palavra, enquanto o seu marido que trabalha para o governo e segundo Jean
é uma ovelha, pois apesar de estar puto, não faz nada e em alguns momentos até
parece gostar do contador de palavras.
“Como mulheres, devemos manter o
silêncio e obedecer. Se precisarmos saber de algo, perguntemos aos nossos
maridos na intimidade do lar, porque é vergonhoso uma mulher questionar a
liderança do homem, ordenada por Deus.”
As coisas começam a mudar quando o
irmão do presidente sofre um acidente que faz com que ele fique com a afasia de
Wernicke e Jean é convocada a voltar a trabalhar para reverter a anomalia
cerebral, ela resolve fazer um acordo com o governo pedindo para ter sua amiga
Lin como auxiliar e que retirassem os contadores dela e de sua filha.
Mas quando Jean começa a descobrir
que nada parece ser o que realmente é, que o laboratório no qual está
trabalhando não parece estar interessado somente em desenvolver curas, ela
entende que a única forma de sobreviver é resistir.
Esse livro fez com que eu
questionasse minhas próprias ações, o não fazer nada, o não se posicionar
também é uma posição, até que ponto ficamos dentro de nossas bolhas e não
percebemos que o perigo está a espreita? Tem muitas passagens que fazem a gente
querer socar os personagens, em muitos momentos fiquei com nojo dos homens e
pensar que muitos são assim na vida real me dá muita indignação, mas ei, não
pense que é um livro de ódio aos homens, não há generalizações, tem sim aqueles
homões da porra também, que se posicionam e veem que tá tudo errado e vão lutar
ao lado das mulheres para derrubar o sistema opressor. O aprendizado é que
ninguém tem o direito de tirar a voz de alguém, e nunca podemos abaixar a
cabeça porque um homem diz que somos menores por sermos mulheres, afinal who run
the world?
Por fim, como historiadora que
estudou distopias na faculdade e quase fez a própria monografia sobre
distopias, posso dizer que este livro tem tudo para se tornar um daqueles de
referência para ficar do lado de, por exemplo, ‘1984’ e ‘Admirável Mundo Novo’,
ah, e quem mergulhou nas histórias da Katniss e da Tris também irá curtir essa
leitura. E principalmente, quem assim como eu ama o seriado The Handmaid’s
Tale, essa é a leitura certa para enquanto esperamos a próxima temporada.
Um obrigada especial a Editora
Arqueiro por nos mandar o livro antes do lançamento.
‘Vox’ será lançado no próximo dia
16 e está em pré-venda com brinde especial.
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